Nossa editora de estilo, Ana Wainer, filha de professores e cética convicta, viu a vida mudar depois de um workshop que relaciona os ciclos femininos às fases da lua. Antes uma pessoa que sequer percebia o próprio corpo, agora ela se sente verdadeiramente conectada a ele.
“Posso encher a boca para dizer: a relação com o meu corpo era uma antes de colocar em prática o calendário lunar e ficou outra depois dele. Do alto dos meus 32 anos, não o percebia, não era capaz de ouvi-lo porque não falávamos a mesma língua. Gosto de dizer que havia uma barreira anestésica entre nós. Eu usava o Nuvaring [um anel vaginal com menos hormônio que as pílulas tradicionais] como método anticoncepcional e a minha menstruação não passava de um termômetro para checar mensalmente se eu estava ou não grávida.
Aliás, eu tinha uma espécie de candidíase contínua, que aparecia mês sim, mês não há pelo menos cinco anos. Lidar com essa doença tinha se tornado parte da minha rotina, parte da mulher que eu costumava ser. Via a candidíase como um mal genético (as mulheres da minha família também reclamam desse incômodo) e apesar dos tantos remédios e probióticos que tomava para tratar, nunca de fato conseguia me livrar dela. Ainda sentia muita cólica. Um dos motivos de manter o Nuvaring era diminuí-las e evitar que atrapalhassem um dia de trabalho, por exemplo. O que acontecia com alguma frequência.
Essa Ana, guiada por um modo automatizado, mas não autônomo, em relação ao próprio ciclo, existiu até o começo de 2019. Foi quando alguns acontecimentos serviram de gatilho para as transformações profundas que cito no começo deste depoimento. A primeira delas, um término de namoro. Foi um relacionamento relativamente breve – cerca de seis meses –, mas que me trouxe uma percepção completamente nova de mim mesma. Em relações anteriores, eu tinha medo de ser julgada e acabava me censurando. Nesse, fui verdadeiramente eu pela primeira vez. E foi libertador. Mal sabia, mas aquele momento do término anunciava um novo capítulo de autoconhecimento em minha vida. Eu não aceitaria mais mascarar sentimentos ou viver em artificialidade.
Então, semanas depois, aconteceu Juliana Luna no meu caminho. Uma carioca da minha idade, artista, ativista, estudiosa do corpo feminino, das nossas potências e sensibilidades. Fomos nos conhecendo aos pouquinhos. Primeiro eu a vesti para um casamento, depois ela foi em um bazar de roupas que realizei. Ela é professora de ioga também, e eu a acompanhava nas redes. Mas de fato nos aproximamos por causa de um projeto comercial que fizemos juntas no começo do ano. Aí nos tornamos realmente amigas. E que privilégio é tê-la por perto. Juliana é muito calma, fala baixinho e pausadamente, mas também é supercarismática. Você a conhece e não quer mais largar. Tem algo magnético em sua energia que eu nunca soube explicar.
Bem, na época, Juliana anunciou em suas redes que daria um workshop de calendário lunar para mulheres. Um curso que falaria das nossas deusas interiores, das fases da lua, de menstruação, de corpo e ciclos. De dores, mas ainda de descobertas. Minha reação quando soube, confesso, foi dar risada, porque é esse o clichê perverso que usamos para essas coisas ‘do sagrado feminino’. Eu ri, porque além de não levar a sério, desconhecia aquilo. Havia um julgamento feio e raso da minha parte. Sou filha de professores, cresci em uma família em que o conhecimento científico é uma espécie de norte. Isso me levou a desconfiar dos tratamentos alternativos, me levou a ter preconceito com terapias que não acontecessem dentro de um hospital. Imagina então terapias que levem em conta as fases da lua que existem dentro de nós?! Mas, apesar do pensamento jocoso que manifestei sobre o calendário lunar, eu sentia um respeito e uma admiração enormes pela Juliana. E esses sentimentos me levaram a fazer a matrícula para o workshop. Aqui entra ainda o gatilho do fim do meu antigo namoro. Eu já queria mexer em mim, balançar minhas próprias crenças, me abrir para o mundo. Era a hora certa e com a tutora certa.
O workshop foi na rua Augusta, centro de São Paulo, dias depois do Carnaval. Estavam lá somente mulheres, umas 15. Ficamos uma tarde toda juntas, basicamente ouvindo. Juliana explicou sua pesquisa, disse que o calendário lunar associava o nosso ciclo às fases da lua, às estações do ano e aos orixás. São quatro ciclos de sete dias cada. E há um orixá para cada ciclo. Nanã para a lua nova, que é o momento da menstruação, Oiá, que é para logo depois, Iemanjá e Oxum para a ovulação, que é fase da lua cheia, e Iansã, para a fase de recolhimento, que é o momento da lua minguante. Você deve se perguntar: mas nem todas as mulheres menstruam ao mesmo tempo, como explicar que as fases da lua coincidam com os ciclos de todas? Pensamos em luas internas, que se manifestam dentro da gente. Juliana chama sua pesquisa de ‘The Aluna Method’. ‘Nossa natureza cíclica é conectada a uma perspectiva lunar. Ensino a nos alinharmos a nossa energia lunar – que é nossa energia feminina – sem descreditar nossa energia solar, que vem balancear toda a experiência’, assim ela começava aquele encontro.
Lembro de Juliana sugerir: “Você nunca vai se conectar com as suas deusas se continuar usando o anticoncepcional. Os hormônios interrompem o ciclo natural do seu corpo”. Na mesma hora, pensei: não vai dar para mim, não fico sem o remédio. E, de fato, nunca antes havia questionado parar de usar anticoncepcional. Era um lugar de segurança desde os meus 18, me protegia de gestações indesejadas, aliviava as minhas cólicas. Então, ela disse algo que me soou como poesia: ‘Menstruar sem a interferência de hormônios é devolver a semente da vida para a terra’. Uma chave virou na minha cabeça. Não sei exatamente se era Juliana e toda sua potência, se eram as mulheres ali reunidas em um clima de sororidade como nunca havia experimentado antes, se era uma disposição inédita que me batia… O que sei é que fez diferença encarar a experiência com o coração e a mente vulneráveis. Se você não está disponível para o novo, talvez não faça sentido mesmo.
Saindo do workshop, imediatamente interrompi o Nuvaring. Era o mínimo que podia fazer. Passei também a escrever um diário, registrando o que estava sentindo e como percebia meu corpo. Por exemplo: hoje acordei estranhamente cansada, hoje me sinto inchada, hoje estou com mais tesão do que normalmente, hoje tive uma fome gigantesca, hoje passei o dia mais agitada. Logo entendi que escrever sobre os meus sentimentos era uma forma simples de me conhecer mais. Passei a ligar os pontos e ter mais compaixão pelo meu corpo. Se tenho uma fome inexplicável em um momento de lua nova, comerei porque é questão de necessidade. Se estou depressiva em uma lua minguante, apenas aceito e sei que vai passar. Se estou em uma fase de preguiça, também aceito porque sei que meu corpo deve acordar em breve.
Houve um tempo em que usava absorvente interno porque não gostava da sensação do sangue descendo. Nem o copinho uso mais. Prefiro as calcinhas absorventes porque faço questão de ter contato com meu sangue. Não consigo introduzir mais nada na vagina para escondê-lo. Outro dia fui à praia, não levei a calcinha absorvente, manchei a roupa e tudo bem. Nem isso me assusta ou me enoja. Sobre as cólicas, continuo tendo, mas dialogo – literalmente – com a dor e parei de tomar remédios para aliviá-la. Acredite ou não, sinto que dói menos. Desde aquele workshop, também não tive mais candidíase. E atualmente, meu método contraceptivo é a camisinha e nada mais. Ah, não abandonei as consultas com o meu ginecologista, nem pretendo.
No mais, estou me escutando e acho que no fundo o meu corpo queria apenas a minha atenção. O método de Juliana me devolveu a agência de mim mesma. Não a vejo como alguém para seguir cegamente sem duvidar, mas alguém que dividiu comigo um saber que me colocou num caminho importante de autoconhecimento do qual não quero sair. E teve mais: no processo, desenvolvi mais empatia. A forma como enxergo o outro, especialmente outras mulheres, está diferente. A forma como recebo as coisas também. Alguém não me querer romanticamente continua doendo, mas agora consigo saber disso sem ter vontade de me autopunir. Estou explorando coisas novas, gostando das chances que tenho dado a mim mesma. Os corpos das mulheres foram, historicamente, terceirizados. Não coube a nós mesmas olhar para eles. Somos desinformadas a respeito de nossos ciclos, sentimentos e de nossas sensações. Experimentar meu autogoverno é algo muito valioso.”
O que diz a ciência
Como explicar o sumiço da candidíase do corpo de Ana, uma vez que ela interrompeu o tratamento medicamentoso da doença?
Gilberto Nagahama, ginecologista e obstetra, diz que a resposta não está exatamente no calendário lunar, mas em uma transformação na cabeça da editora de estilo. “Não podemos nunca nos esquecer de que a candidíase tem influência autoimune e se manifesta diante de estresses, ansiedades, nervosismos e – por que não? – opressões. Ana começa seu relato dizendo que depois de um término de namoro se abriu para a vida e que não aceitaria mais ‘mascarar sentimentos ou viver em artificialidade’. Aí está um gatilho para o autocuidado e, logo, também um gatilho para o sumiço de uma mazela autoimune”, ele argumenta. Outra possível resposta, diz o médico, deve estar na mudança de hábitos (de comer melhor e evitar excessos de tóxicos como álcool e cigarro) e, até mesmo, na retirada do contraceptivo Nuvaring, “que, por ser intravaginal, altera o pH da flora da região, onde estão os fungos da candidíase”. “Não é nada incomum mulheres abandonarem anticoncepcionais, hormonais ou não, e o corpo delas cessar a candidíase”, continua Gilberto. O ginecolista ainda alerta: “Mulheres devem ver a candidíase como um sinal de que algo, e esse algo nem precisa ter a ver com sexualidade ou aparelho reprodutor, vai mal em seus organismos. É uma oportunidade para se avaliarem e avaliarem a forma como estão cuidando de si”.