Falar sobre o odor – característico, que fique claro – do genital feminino ainda é tabu e motivo de vergonha para a maioria de nós. Marie Claire foi entender os porquês do constrangimento e concluiu: vaginas têm cheiro sim, isso é mais que natural; a melhor higiene é água e nada mais. Lidem com isso
Entre muitas outras coisas, mulheres são ensinadas, ainda na infância, que suas vaginas e vulvas – sim, são coisas diferentes; a primeira é o canal, a outra, a parte externa do genital – não devem ser vistas ou tocadas e que o cheiro delas deve ser camuflado com sabonetes aromatizados. O tal “cheiro de bacalhau” é como um vilão que assombra a vida de todas nós ad infinitum. Ou vai dizer que você nunca procurou um sabonete íntimo pra chamar de seu? Isso sem falar das receitas caseiras que povoam a internet. Vinagre de maçã. Iogurte natural. Bicarbonato de sódio. Groselha espinhosa da índia.
Ser mulher é – também – lutar contra o cheiro da própria vagina. Mas, o que tem de normal na tarefa? Genitais femininos devem mesmo passar por uma assepsia perfumada? Afinal, o que quer uma mulher quando usa o bicarbonato de sódio para isso? Dadas as circunstâncias nada acolhedoras a esse respeito, fomos entender os porquês do constrangimento e esclarecer as razões da patrulha da limpeza. Afinal, vagina tem que ter cheiro? Se sim, do quê?
“Eu odiava meu cheiro. Usava sabonete íntimo, fazia reza braba [sic], banho de assento e só piorava. Não parava de ter corrimento e candidíase. Me estressava bastante”, conta a promotora de vendas Nycole Camelo, 31 anos, que, na época, tinha até receio de receber sexo oral do namorado. Após idas ao ginecologista e pesquisas sobre o tema, ela se deu conta de que o excesso de higiene podia ser o causador do desconforto que sentia. Há seis meses, só usa sabonete glicerinado e água. “A gata aqui embaixo está muito feliz”, conta.
A verdade é que mulher nenhuma precisa evitar ou mascarar o odor da própria vagina. Até porque, vaginas têm sim cheiro, assim como os pênis. Aliás, ninguém lembra disso, né? Sabonetes íntimos para o genital masculino. Já ouviu falar no produto?
Dolores Nishimura, ginecologista e obstetra, diz que parte do imaginário “cheiro de bacalhau” vem de uma concepção de que a região genital, especialmente a feminina, é suja. “A menina cresce com a ideia de que ‘limpo’ é o que tem cheiro de sabonete, porém nosso corpo não é assim. A vagina tem cheiro próprio e definitivamente ele não é de sabonete.” Se mulheres fossem educadas desde pequenas a entrar em contato com suas vaginas, afirma a médica, saberiam que é natural que cheirem. “Enquanto todos ficam felizes e satisfeitos que o menino brinque o pênis na infância, quando a menina faz o mesmo com a vulva ouve que é suja, que o gesto é feio, que ali ela não deve tocar. Bem, isso faz com que garotas cresçam sem conhecer o próprio corpo, sem saber ao menos a cor, o cheiro, o formato de suas vulvas.” Ou seja: quando falamos de cheiro de vagina, estamos lidando com desinformação.
De onde vem o cheiro?
Desde um pouco antes do início da menstruação até o final dela, as mulheres produzem, diariamente, secreção. Isso faz com que o genital feminino, naturalmente úmido, tenha odor próprio. “Quando normal, essa secreção pode ter cor variando do transparente ao amarelo claro, quantidade não muito abundante e odor que não é necessariamente desagradável”, afirma Dolores. O cheiro, que pode ser mais ácido ou adocicado e passa por mudanças ao longo do ciclo menstrual, é resultado de um processo de renovação celular e de secreções produzidas no colo do útero e na vagina, além das glândulas de suor e da oleosidade natural da região da vulva.
Luiza Cadioli, médica de família e comunidade do SUS e integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, destaca que é importante ter em mente que o odor varia de mulher para mulher. “Sempre que tentamos normatizar, padronizar algo em nosso corpo ou comportamento, vai haver alguém normal que não estará dentro desse padrão.”Detalhe: caso a mulher faça questão de higienizar a região com sabonete, é importante dar preferência aos neutros e com pH entre 4,5 e 5,5, que é o pH normal da região, segundo Dolores. No entanto, usar apenas água também basta.
A designer Sabrina Brambilla, 25, odiou seu próprio cheiro até o dia em que deu adeus ao sabonete líquido e deixou para trás calcinhas e roupas apertadas. “Tomei essas decisões pela minha saúde. Meu cheiro melhorou, agora é doce, suave, delicioso”, diz. Faz sentido. O que Sabrina fez foi apenas naturalizar as condições de cuidado com a sua vagina. Água e roupas frescas e tudo mudou pra melhor por lá.
“A indústria cosmética se alimenta de insatisfações com o corpo para venderem soluções milagrosas, como sabonetes íntimos, perfumes vaginais, coisas que não têm a menor evidência científica de que fazem bem”, comenta Luiza Cadioli.
Vale lembrar que nem sempre o odor que incomoda vem da vagina. A ginecologista Juliany Nascimento Silva, do coletivo Ginecologista Sincera, diz que a confusão é recorrente porque muitas mulheres não sabem distinguir os odores característicos da vagina, da vulva e da virilha. “Às vezes um odor vindo da virilha, na região de dobra dos grandes lábios, pode ser o mesmo que uma mulher teria embaixo do braço se andasse, em pleno verão, com uma jaqueta jeans e uma camiseta de lycra sem usar desodorante.”
O leite de magnésia é uma opção de “desodorante” para a virilha, segundo Juliany. Com baixo custo, além de não possuir cheiro e não manchar a roupa, ele pode ser aplicado em toda a região com a mão ou com um algodão. “Juro por Deus, a minha calcinha fica com cheiro de como se acabasse de ter sido lavada”, conta.
Por uma higiene saudável
Para quem opta pelo uso de sabonetes, alguns cuidados são necessários. As regiões da vulva e da entrada da vagina, por exemplo, devem receber apenas água. “Entre o grande e o pequeno lábio, que é uma região produtora de sebo, pode usar sabonete, de preferência neutro e em pouquíssima quantidade. Ou só água”, orienta Juliany.
As especialistas ouvidas por Marie Claire frisam que o excesso de higiene pode, sim, causar lesões e favorecer o surgimento de feridas, úlceras e líquen escleroso (caracterizado por manchas esbranquiçadas). Isso porque a vagina possui uma flora de microorganismos, que é responsável pelo equilíbrio local e proteção contra infecções, e o excesso de limpeza pode alterá-la.“É muito mais comum atender mulher com excesso de higiene que com falta dela. Já atendi muita mulher escarificada, assada e cheia de ferida por excesso de limpeza”, alerta Juliany. O uso de duchas vaginais também não é indicado. “A higiene da região genital deve ser apenas externa”, reforça Dolores Nishimura.
Odores intensos com “cheiro de peixe podre”, secreção em tom amarelo escuro ou esverdeado, aspecto de leite coalhado, coceiras e dor na relação sexual são sinais que pedem por investigação médica. “Toda secreção que é acompanhada de outros sintomas, como ardência, coceira ou irritação e alteração na coloração também são sinais de alerta”, destaca Dolores.
De acordo com Luiza Cadioli, é importante entender como o próprio corpo funciona justamente para identificar quando houver algum desequilíbrio. “Eu diria que a mulher deve se conhecer e então saberá identificar o seu normal. Autoconhecimento é poder. A grande questão é entender por que aprendemos a desgostar de alguns cheiros nossos”, provoca.
* As ilustrações usadas neste texto são do projeto The Vulva Gallery